“a ausência de doença psiconeurótica pode ser saúde, mas não é vida” (WINNICOTT, [1967] 1975, p. 139).
Winnicott, ao longo de sua obra, distancia-se da noção de saúde da psicanálise tal qual aprendera em sua formação. Por vezes de forma sútil, em especial no início de sua carreira, fazendo questão de render homenagens aos que o precederam, e outras, talvez melhor articulado em suas próprias ideias, de forma mais direta, o autor evidencia que sua experiência clínica trazia novos elementos à vida saudável que não vinham recebendo seu devido valor. Tenho a impressão que Winnicott surpreende, inova, amplia, ao mesmo tempo em que confunde e incomoda, com colocações como :“a ausência de doença psiconeurótica pode ser saúde, mas não é vida”. (Winnicott, 1975, p. 139).
Pouco satisfeito com um processo de desenvolvimento descrito em função do id (Winnicott, 1999, p. 8), para o autor uma vida instintiva vivaz pode até aparentar saúde, no entanto, privilegiar este aspecto como absoluto, isto é, exclui-lo de um panorama maior, trata-se de um erro. Em uma palestra proferida em 1967 ( Winnicott faleceu em 1971 ), intitulada de O conceito de indivíduo saudável, o autor comenta que espera “não incidir no erro de pensar que se pode avaliar um homem ou uma mulher sem levar em conta seu lugar na sociedade”. (idem).
Ao mencionar seu lugar na sociedade, o autor não está propondo uma inversão, olharmos primeiro a sociedade para depois compreendermos o indivíduo, para ele a saúde social depende, antes, da saúde individual. Winnicott está, ao fazer este gênero de observação, sugerindo que a saúde está para além de uma “vida excitante [...]” (idem, p. 14), ou então, uma vida que administra seus instintos da melhor forma possível entre seus desejos e as censuras morais. Incluindo no balaio da vida (saudável) aspectos como a “magia da intimidade.” (idem ), Winnicott está discordando que o ser humano preocupa-se prioritariamente com a sua satisfação instintual em sua relação com objetos. Unindo suas experiências pediátricas e psicanalíticas, o autor nota que
“Não é a satisfação instintual o que faz com que um bebê comece a existir, a sentir que a vida é real, a achar que a vida vale a pena ser vivida.” (Winnicott, 1975, p. 116).
Qual seria então esta busca para além das satisfações do id ou do instinto? Na teoria de Winnicott são as satisfações do ego, satisfações , e necessidades, do ser: a experiência de ser é, portanto, o aspecto fundamental e motor da existência humana para Winnicott. As satisfações instintuais são, também, parte da experiência de ser. Na saúde, as experiências instintuais são integradas ao ego passando a sentirem-se parte de uma mesma unidade, isto, no entanto, não é um processo garantido e a ausência de um ambiente facilitador pode impedir que este processo seja realizado.
A integração da vida instintual ao ego\eu é, nesta perspectiva, uma conquista que pertence ao processo de desenvolvimento emocional do ser humano, constitui parte de suas necessidades, mas não sua totalidade e, embora exista um potencial para que isto ocorra, assim como as demais etapas do desenvolvimento, depende de provisões ambientais específicas para realizar-se.
Saúde, para Winnicott, significa continuidade do ser, penso que esta definição, no entanto, diz respeito a aspectos ontológicos que abordo no artigo Perspectiva ontológica . Aqui trato da forma como Winnicott descreve, principalmente para o público não psicanalítico- que vai desde psiquiatras, enfermeiras, assistentes sociais a palestras transmitidas por rádio -, o indivíduo saudável dando ênfase ao lugar que ele ocupa na sociedade.
Mas o que, afinal, Winnicott quer dizer com o lugar na sociedade que o indivíduo ocupa ao buscar estabelecer uma noção de saúde? Bem, a princípio parece ficar claro que a quantidade de satisfação instintual, em constante negociação com as exigências e censuras sociais, trata-se de um critério equivocado de discernimento entre um ser humano saudável e um patológico. Winnicott está atento, neste sentido, ao indivíduo e seu modo de relação com o ambiente, neste sentido, creio que a seguinte formulação possa ser feita: será que esse indivíduo encontrou um lugar na sociedade em que ele possa manter relações sociais sem que tenha que se adaptar demasiadamente a um padrão? Em última instância, será que ele é capaz de ser, e sentir que poderá continuar sendo, nas relações que estabelece com o ambiente\sociedade?
Outro ponto interessante, dentro ainda desta discussão entre saúde e doença, é o de Winnicott não estabelecer um critério hierárquico entre as doenças mentais em relação a saúde, nesta linha, observa o autor, os neuróticos não podem ser considerados, de prontidão, menos doentes que os psicóticos. A saúde e a doença, dentro de seu sistema teórico, são referidas mais ao tipo de relação que o indivíduo é capaz de estabelecer (consigo e com o mundo) do que com o estabelecimento de estruturas mentais mais ou menos eficientes na administração dos processos psíquicos.
Neste sentido, Winnicott apoia-se em uma definição de seu colega John Rickman (1891-1951) para, em uma palestra destinada a assistentes sociais, apresentar uma definição de doença: “‘Doença mental consiste em não ser capaz de encontrar alguém que possa aturá-lo’” (Winnicott, 1983d, p. 196).
Masud Khan, na introdução do livro D. W. Winnicott Holding e Interpretação (1991a), descreve um episódio que ilustra a habilidade de Winnicott em dialogar com diferentes personalidades. Khan conta que Winnicott, já no final de sua vida, foi procurado por um grupo de jovens padres anglicanos. Os eclesiásticos buscavam orientações para estabelecerem um critério entre os casos que deveriam encaminhar as pessoas que os procuravam para tratamento psiquiátrico e quando podiam auxiliá-las simplesmente com seus conselhos. Winnicott (1991a, p. 01) respondeu:
Se uma pessoa vem falar com você e, ao ouvi-la, você sente que ela o está entediando, então ela está doente e precisa de tratamento psiquiátrico. Mas se ela mantém o seu interesse independentemente da gravidade do seu conflito ou sofrimento, então você pode ajudá-la.
Winnicott, ao descrever umas das complicações no alcance da capacidade para a assimilação da vida instintual ao ego, sugere que o indivíduo pode vir a ter que viver num estado baixo de vitalidade resultante de problemas na integração de suas experiências, embora razoavelmente integradas ao ego, as elaborações destas experiências podem não estarem sintonizadas suficientemente ao ego, representando assim um problema para o indivíduo. Uma saída frente a este incômodo pode ser a inibição do instinto, o ganho de tal domesticação, no entanto, resulta em um empobrecimento geral da personalidade; penso que tais características são compatíveis ao perfil da pessoa tediosa.
As considerações de Winnicott nos permite, assim, um olhar mais acurado sobre o ser humano que por vezes esbanja normalidade ao longo de sua vida até um ponto em que, subitamente, não encontra mais meios de sustentar as seguidas supressões instintuais não integradas ao ego. Aqui o papel do analista é de possibilitar , dentro do contexto analítico, a emergência, vivência e elaboração de tal conteúdo em seu processo de integração ao ego, aumentando o repertório e a riqueza das experiências, mas, principalmente oferecendo a possibilidade da experiência de ser e continuar sendo.
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