Desenvolvo aqui as relações entre as ideias do autor e a psicanálise desenvolvida por Freud e continuada por Klein. Busco destacar alguns aspectos teóricos bem como suas repercussões clínicas. Se por um lado este caminho encontra correspondências e continuidades, por outro observamos Winnicott utilizar os conceitos psicanalíticos “de uma forma idiossincrática, e por vezes desconcertante, que não era compatível com a teoria psicanalítica tradicional” (Phillips, 1988, p. 24).
Alguns aspectos de tal incompatibilidade são: a relevância (demasiada) dada a satisfação instintual, as necessidades que precedem o desejo, os primeiros estágios da elaboração do ego, a aquisição da capacidade para usar um objeto, responsabilizar-se pelo dano infligido a este e elaborar algo a respeito. Destaco aqui um trecho do texto Enfoque pessoal da contribuição kleiniana (1962), em que Winnicott descreve a divergência que notara entre a psicanálise que estudara, e começara a aplicar, e o que se deparava em sua clínica:
Então, inumeráveis histórias clínicas me mostravam que crianças que se tornaram doentes, seja neuróticos, psicóticos, psicossomáticos ou antissociais, revelavam dificuldades no seu desenvolvimento emocional na infância, mesmo como bebês. Crianças hipersensíveis paranoides podiam até ter começado a ficar assim nas primeiras semanas ou mesmo dias de vida, Algo estava errado em algum lugar. (Winnicott, 1983e, p. 157).
Winnicott, contudo, não parece propor uma substituição. Na verdade, ao longo de sua obra o autor faz questão de mencionar e atribuir valor aos autores e trabalhos que o precederam. Em Aspectos clínicos e Metapsicológicos da Regressão no Contexto Analítico (Winnicott, 2000b), por exemplo, Winnicott observa o movimento regressivo dos pacientes em análise de um ponto de vista diferente do de Freud, notando que Freud descreveu o trauma como uma fixação libidinal em determinada fase do desenvolvimento instintual, Winnicott sugere que os pacientes, ao regredirem, buscam retornar à experiência traumática no intuito de reviverem esta experiência, desta vez, contando com um ambiente facilitador que o permita integrá-la a seu ego.
Ainda assim, cabe notar que mesmo introduzindo aspectos inovadores, como tarefas ambientais específicas que alteram o proceder clínico clássico, Winnicott ao referir-se a teoria do desenvolvimento instintual, ressalta que
“[...]esta teoria já comprovou o seu valor e é utilizada em nosso trabalho cotidiano, de modo que não há motivos para abandoná-la enquanto a examinamos com um novo olhar” (Winnicott, 2000b, p. 379).
Proponho abordar aqui alguns aspectos que considero úteis para compreendermos o sentido deste novo olhar , isto nos leva, principalmente, as considerações do autor sobre o desenvolvimento em torno da dependência do ambiente e as tarefas ambientais que facilitam, ou dificultam, o processo maturacional impulsionado pela tendência inata à integração do ser humano.
É possível dizer que Winnicott, ao longo de sua obra, notou que pensar o indivíduo a partir da qualidade do instinto dentro do esquema de fases (ou posições) é útil e operativo. Ao referir-se a teoria do desenvolvimento instintual (ou sexual), o autor coloca que: “Tudo isto está bem. É tão verdadeiro agora como era então, e nos iniciou em nosso pensamento e na estrutura da teoria pela qual nos orientamos. Está portanto em nossos ossos, por assim dizer” (Winnicott, 1983a, p. 79).
No entanto, mesmo admitindo certa eficácia, Winnicott deparou-se com pacientes que não eram contemplados por tal método, acabando por notar, assim, que “uma grande quantidade de material clínico não se encaixa nos moldes desta teoria.” (Winnicott, 2000b, p. 380). Como alternativa, Winnicott sugere pensarmos o indivíduo e o seu desenvolvimento em função do ego e da dependência. Nesta visão, torna-se fundamental considerarmos o papel do ambiente em tal processo – o que não é necessário se o fizermos em função do id ou dos instintos (Winnicott, 1999, p. 4 ).
Pode-se dizer que Winnicott identifica uma deficiência no método psicanalítico em lidar com os sintomas de indivíduos que não passaram pelos cuidados adequados (na constituição do ego), na visão do autor, aqueles que não se encaixavam no quadro clássico dos psiconeuróticos, e alerta: “Precisamos de critérios mais sutis” (Winnicott, 1999, p. 98). Sem ignorar os estudos realizados das fases pré-genitais dos instintos, a questão para o autor é que este trabalho começava a evidenciar dificuldades de expandir-se a uma parcela mais abrangente de manifestações patológicas por estar sendo aplicado a pessoas que tinham outro tipo de necessidade que aquelas desenvolvidas e centradas no reino das relações interpessoais. Nesta visão, os problemas\patologias apresentados\comunicadas pelos pacientes mostravam-se discordantes de uma teoria que sugere a sexualidade e os instintos como os motores últimos da existência (Fulgencio, 2013a).
Ao fazer este gênero de observação, discordando da satisfação instintual como aspecto motor da existência e atribuindo ao ambiente uma importância crucial dentro do processo de desenvolvimento do ser humano, penso ser importante marcar que as ideias de Winnicott não se devem, apenas, a embates teóricos. Na verdade, ao longo de sua obra vai distanciando-se das discussões metapsicológicas que regem o funcionamento dos processos mentais, mediados por forças pulsionais e processos energéticos, que envolveriam o indivíduo na sua complexa busca por satisfação e sobrevivência.
Integrando sua formação psicanalítica a seu percurso pediátrico e, somado a estes, a situação ambiental da Inglaterra pós-guerra (que fez com que os ambulatórios recebessem muitas crianças que não tiveram um adequado cuidado ambiental), Winnicott acabou deparando-se com o tratamento de bebês e crianças que, além de direcionar sua observação para os acontecimentos mais primitivos e precoces da vida do ser humano, o fez suspeitar que suas patologias derivavam de outro fator que insatisfações, ou repressões, na administração da vida instintual. Phillips, sobre este contexto, nota que “Assim como as chamadas ‘neuroses de guerra’ tinham influenciado no desenvolvimento da teoria psicanalítica, os problemas das crianças evacuadas na Inglaterra mudaram o pensamento psicanalítico sobre a infância” (Phillips, 1988, p. 99).
Não foram, no entanto, apenas as crianças e bebês que Winnicott se propôs a tratar que o alertaram a outros aspectos essenciais à vida humana do que a satisfação do instinto, o trabalho com psicóticos também o auxiliou neste caminho. Winnicott não foi pioneiro neste sentido, outros já haviam tentado estender a psicanálise para patologias para além da neurose, sua visão é inovadora, neste campo, devido as considerações etiológicas que reivindica. Para o autor, é a falha ambiental que está na gênese da patologia psicótica, isto significa, dentro de sua compreensão de uma teoria do desenvolvimento, pacientes (quer sejam bebês, crianças ou adultos) que não receberam o cuidado ambiental adequado sofrem de maneira diferente, bem como necessitam de um manejo diferente, daqueles que tiveram a oportunidade de serem bem cuidados (o que não os exclui de enfrentar, também, dificuldades). Notando, então, as repercussões do cuidado ambiental fornecido ao indivíduo para o seu desenvolvimento, tanto saudável quanto patológico, Winnicott desenvolve o tema da dependência.
Winnicott descreve dependência do ambiente em três diferentes níveis ao longo do processo de desenvolvimento: dependência absoluta, dependência relativa, rumo à independência. Foge do contexto deste trabalho uma explicação detalhada de cada etapa, o que procuro salientar aqui é a importância atribuída ao ambiente de forma inovadora dentro da psicanálise e os desenvolvimentos que o autor faz e suscita a partir desta consideração. A posição depressiva, ou estágio do concern, por exemplo, localiza-se na teoria de Winnicott na fase da dependência relativa. Nesta etapa que ocorre a integração da unidade, é neste período também, que o indivíduo reconhece não só a sua existência como a do ambiente e, assim, é apresentado a dependência enquanto um fato – anteriormente ela já existia, ele só era incapaz de percebê-la. A dependência neste estágio caracteriza-se pelo fato do indivíduo ser capaz de relacionar-se apenas com uma pessoa (mãe ou mãe-substituta), tal característica é importantíssima uma vez que as dinâmicas que se dão ao longo deste período dual, bebê e mãe, são descritas por Winnicott como anteriores ao complexo de Édipo, assim, são constituídas de elementos (ansiedades e defesas) que não referem-se a castração ou a figura de um pai interventor.
É durante a fase do concern, etapa que só é possível após o reconhecimento do status de unidade e marcada pelas dinâmicas duais estabelecidas entre o bebê e a mãe, que a vida instintual ganhará significado para o indivíduo. Isto implica em um processo em que ela passará a ser reconhecida, integrada ao ego\eu que, gradualmente, toma responsabilidade sobre ela. Nota-se que Winnicott tece sua teoria do desenvolvimento observando as integrações que o ser humano é capaz de fazer, ele não discorda de toda dinâmica edípica, mas a coloca como parte do processo ao invés de atribuí-la importância máxima na constituição do indivíduo. Loparic, notando o fato de Winnicott tecer uma teoria do desenvolvimento para além da dinâmica edípica, entende que o psicanalista concebeu “uma psicanálise sem o sujeito constituído à maneira de um Édipo em potencial e sem atribuir à situação edípica (ou pré-edípica) o papel de detonar os distúrbios mentais.” (Loparic, 1997, p. 49).
Para além das resoluções que ocorrem no Édipo, sendo que a rigor pode ser que este estágio não seja se quer alcançado, Winnicott observa que o “O ser humano é uma amostra-no-tempo da natureza humana”. (Winnicott, 1990, p. 29), isto significa que o ser humano é um ser essencialmente temporal, os fenômenos humanos são, assim, desdobramentos temporais desta natureza humana, Dias (2003, p. 91) observa que “A teoria winnicottiana do amadurecimento pessoal é a explicitação temporal, na forma de estágios ou etapas, das várias tarefas que a tendência inata ao amadurecimento impõe ao indivíduo ao longo da vida.”. Neste sentido, Winnicott observa que o ser humano conta com um potencial herdado, o ser humano é para ele um ser dotado de uma tendência inata à integração, isto significa que ele não nasce já integrado em uma unidade, esta é uma conquista, “Cada indivíduo está destinado a amadurecer, e isto significa: unificar-se e responder por um eu.” (idem).
Notando as integrações que precedem a experiência edípica, a existência de diferentes manejos do ambiente em também diferentes fases , e da assimilação de elementos não reduzidos a descargas instintuais, busquei ressaltar aqui parte da amplitude teórica e clínica das contribuições de Winnicott.
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